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terça-feira, 22 de março de 2011

“Jangada para longe”, Ondjaki

“Jangada para longe”, Ondjaki

Si rotcha é pâgina! Pêra ê sílaba
si corpé é caneta! Coraçon ê tinta

Corsino Fortes, Árvore & tambor

Para ele o mundo era um quintal enorme dotado de compartimentos separados por água, e fenómenos como as chuvas, as tempestades, ou mesmo os ódios dos homens carregados em navios enormes, eram gotículas para qualquer sorriso desfazer.
Por hábito, sentava-se no monte observando navios partir e chegar. Vivia obcecado com a ideia de conhecer outros países, mais do que isso!, outras gentes, como se as suas veias fossem irrigadas por sensações movediças e volúveis ao empurrão do  vento, nisso que era o seu prazer mais íntimo: observar os que chegavam, cheirar-lhes os cabelos, catalogar-lhes o sorriso segundo a proveniência, e, quase impercetivelmente, fazê-los falar de coisas banais acontecidas do outro lado do mundo.
Trabalhava há meses na secreta engenhoca, desenvolvendo no alpendre barulhos entrecortados com pancadinhas, importando para o habitáculo toda uma gama variada de pregos, panos, tubagens diversas, correntes, metais, tintas, até ao dia em que a barulhagem cessou e apenas restou o som de um assobio simples, desnutrido de qualquer ritmia mais complicada ─ como cantam os pássaros antes de terem molhado o bico na frescura da manhã.
Sem cerimónias para empolar o acontecimento, retirou o engenho da casa num lento mas eficaz berço semimecanizado, e o povoado sorriu em uníssono numa candura de espanto e respeito pelo enorme objeto misterioso que desfilava pelas pedras da calçada. O desfile solitário cessou na praça principal.
A estranha criatura de madeira era perturbante e bela, fria e poética, ridícula e cativadora, o que impelia os observadores locais a sorrir de modo involuntário, como se a incompreensão do seu funcionamento em vez do rancor pelo inventor antes instigasse uma sensação de autoria coletiva. Todos, cada um a seu tempo, modo e sorriso, sentiam patentes na obra o cunho da sua contribuição pessoal e nunca se saberá quem foi o primeiro jovem ou a primeira velha a depositar no corpo do ser móbil a primeira recordação, o segundo objeto de decoração, a terceira folha de árvore, a quarta estátua de madeira ou a quinta folha de secção de poesia do único jornal local. Naquilo que se julgou ser o guiador da máquina, a velha mais velha do povoado (sendo por isso a mais bela) amarrou com vigor o único sibitchi que o engenho levava.
Durante dois dias a exibição perdurou, numa ânsia que crescia por si e se alimentava de horas e olhares, tendo originado que a máquina fosse já outra, repleta de decorativos tradicionais, besuntada de cores vivas, vítima de peso duplicado pelas oferendas que as duas bagageiras abarrotavam. Crianças, aleijados e idosos, bebés de colo e cães vadios, nuvens e sóis, centopeias negras e pássaros brancos, marinheiros e putas pobres, comerciantes e doidos serenos, pescadores com estórias de sereias e ventos místicos, farmacêuticos e padres, bêbados e beatas, o governador e a esposa gorda e até um caixeiro-viajante, estiveram todos na praça, no terceiro dia, aguardando as primeiras palavras do inventor da escultura já carnavalesca. A velha mais velha do povoado (sendo por isso a mais sabedora) viu o mundo e o povoado banhados pela névoa da sua lágrima idosa e todos então souberam: era uma máquina de se pedalar para longe. 
Depois das palavras do governador, encorajando a atitude criativa do cidadão, elogiando com emoção a sua iniciativa cultural e declarando aquele dia feriado nacional, o inventor tomou a palavra e, nuns modos verbais desajeitados, instigou a população a contribuir com gravuras, comida seca, plantas medicinais, panos, sementes e livros ou registos pessoais de poesia:
Poesia, sim… ─ disse, em banho de comoção. ─ Porque é isso que um povo deve oferecer a outro!
Mais adiantou o local da sua derradeira partida, explicando que faria esse longo percurso em velocidade lentíssima para que os conterrâneos apreciassem as qualidades da máquina, indagassem de suas potencialidades e lhe fossem entregando nesse percurso inclinado para o lado de lá do mundo, as cartas, os recados e os conselhos válidos para a movimentação humana que aquela viagem materializava.
Ao longo da estrada, entre um e outro solavanco de pedra, exibiu ao povoado o complicado engenho que a sua imaginação fizera eclodir: uma labiríntica máquina de ventos e popas, tubos de refrigeração e reaproveitamento de líquidos e sopros, compartimentos impossíveis, reguladores de temperatura e duas enormes bagageiras para livros já com cantos falsos previstos para a naftalina em bola branca. Era máquina para ocupar meia dúzia de metros quadrados mas com estabilidade estudada e apetrechos científicos que a permitiam mover-se a vento, ácido úrico ou força humana que se expressasse em ato de pedalação.
Quando chegou à praia, nesse lento cortejo que havia acontecido, alguns dos ilustres convivas do povoado já lá o esperavam e, na tendência narcísica de se voltarem a ouvir, quiseram mesmo reinventar novos discursos. O dono da engenhoca dissuadiu-os de o fazer, enquanto se desfazia de alguns volumosos mantimentos gastronómicos que a população ofertara, sendo que a praia, azulada e linda, foi palco de um improvisado banquete de que as crianças puderam usufruir com certa euforia.
O fim da tarde, propício a momentos de marítima aventuragem, havia-se já instalado. Pássaros aos longe, o sol se extinguindo na água salgada, o violão sorridente de Kaká Barbosa, as cervejas derretendo os corações e a mulata triste, ao longe também, que com o olhar se despedia do homem que partia.
Movimento humano, rústico, o homem iniciou as movimentações ─ correntes puxadas e velas içadas, duas espécies de pedais que se desdobravam de tubos secretos, e a máquina de se pedalar revelou uma poética simbiose de jangada com algo que existisse sob a designação de bicicleta naval. As gentes afastaram-se do homem deixando-o de braços suados com a sequencial preparação mecânica que o ato requeria. E moveu-se ─ aquilo.
Uma onda embateu estrondosa na janguicleta, como seria mais tarde chamada, e os lábios de baixo ─ espanto e burburinho, pois a máquina dançava encaixada na curva das ondas, resistindo às laterais investidas da água, desenvolvendo brilhos d’água nas gotas de sol que as enormes pás movimentavam.
A estranha criatura de madeira e o homem nela baloiçavam na direção do horizonte estirado, e só então um padre despertou para a evidência do que não havia sido indagado:
Ô nhôôôô… ─ o berro sobre as gentes, sobre as águas. ─ Undi ki nhu átabai?[1]
Lá das guelras salgadas da sua garganta, entre o sorriso-só e suor-delícia, entre sombra de sol e raio lunar, entre certezismo hirto e utópico deslumbramento, o homem pedalante gritou assim:
N’ta ba tê Spanha…, ta ba tê Merca di bicycleeeetaaaaa![2]


[1] Onde é que vai?
[2] Vou até Espanha… Até à América, de bicicleta! [Versos do poeta cabo-verdiano Corsino Fortes.]

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